Conto “O QUE VOCÊ FARIA SE SÓ TE RESTASSE UM DIA?”
Ela amava Paulinho Moska:
- O que você faria se o mundo acabasse, meu amor? Se só te restasse um dia?
Seus olhos ficaram fixos num ponto qualquer. Perdidos. O que ela faria se soubesse que era seu último dia?
Pensou que mudaria grandes ações, mas já não acreditava em grandes movimentos porque os pequenos e constantes movimentos coletivos – que os políticos tentavam impedir sempre, falando de grandes movimentos que nunca aconteciam é que lhe pareciam realmente revolucionários. Portanto, talvez tentasse dar maior visibilidade às suas ações – mas já fazia isso também. Apenas não aceitava que tudo na internet fosse como repetir a mesma receita de bolo: marketing, SEO, etc.
- O que você faria se só te restasse esse dia?
Iria à Brasília fazer um discurso contra o Artur Lira? Subiria num palanque e defenderia o direito à floresta dos indígenas? Traria Ana Mozer de volta, daria um chute no Fufuca, chamaria os políticos de inconsequentes, delinquentes, incongruentes?
- O que você faria?
Seus olhos focaram as letras dos jornais e mais um ciclone, mais uma morte, mais um tiro, mais um voo rasante de helicóptero em busca de bandidos, mais um traficante, mais violência, mais violência...
- Se o mundo fosse acabar, o que você faria, meu amor?
Dentro de si o vazio de perguntas sem resposta: E se não houvesse mais oxigênio, mas houvesse planeta? E se só as pessoas fossem acabar, o que você faria? Cuidaria melhor das florestas ou largaria o gado pastando em solo degradado, no meio do El niño e dos ciclones? O que os gaúchos fariam se tivessem que trocar soja por floresta? Gado por mata virgem? Será que teriam pensado que os rios sobem e descem serras? Será que pediriam ajuda ao nordeste? Será que perceberiam que na desgraça o País se une?
- O que você faria? O que você faria?
- Será que as pessoas ainda não começaram a se perguntar o que elas fariam se este fosse o último dia? Ou amanhã? Ou logo? Porque, meu amor, clima extremo, emergência climática, te faz olhar a vida e querer uma resposta...
- O que você faria se este fosse o seu último dia?
Sentou-se e colocou pela milésima vez o clipe do Paulinho Moska:
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Cá se fazem cá se pagam”
- Lamento imenso, mas a decisão já está tomada. Em breve lhe informamos o dia e horário do procedimento.
- Mas Senhora Juíza, não é possível. Os Senhores não podem fazer uma coisa dessas. Isso é um horror, uma atitude extremamente grave.
- Senhor Antônio, o senhor devia ter pensado nisso antes de cometer os crimes que cometeu. Isso o senhor não considera grave, não é? Precisa colocar seus pés na terra, humanizar seu coração.
- Senhora Juíza, não sou uma pessoa má. Isto é tudo um enorme mal entendido. Acho que os Senhores não ouviram bem ou não tiveram acesso a todas as provas.
- Senhor Antônio, Senhor Antônio, o Senhor já é um adulto. O Senhor já não está agarrado às saias da sua mãe, nem às calças do seu pai. O Senhor paga pelo que fez e pelo que faz, como qualquer adulto. Não me venha outra vez com essa história de que seu pai sempre lhe ensinou que isso era normal e correto e que um homem tinha de ser aceite no mundo dos homens, e para isso tinha de ser assim. E que se não fizesse e aprendesse a fazer essas coisas, seria considerado um falhado, um homem desprezível, um pedaço de nada. E, e isto é que acho incrível, como pensa que vou acreditar que o Senhor, com mais de cinquenta anos, não se considera ninguém sem a aprovação do seu pai e da sua mãe. Senhor Antônio, o Senhor enrolou muita mulher, traiu muita mulher, mentiu a muita mulher, violentou muita mulher, estuprou muita mulher, assassinou muita mulher, não gaste energia nem as suas artimanhas comigo não. Sou mulher, mas desta vez a mulher fará a diferença com o Senhor. Pode ser um homem bonito, sem barriga, com fala mansa e olhar doce. Pode ter tido muito sucesso na vida e estar cheio de casas, dinheiro, amigos. Enganou muita gente caro Senhor Antônio, mas a mim não me engana. E alguém tem de parar seu jogo, tem de impedir que continue a fazer tanto estrago. E a vida quis que fosse eu. Pois serei. Aconselho-o a rever seus comportamentos, a deixar de culpar seus pais, apesar de terem feito muitas coisas incorretas com o Senhor, as suas atitudes criminosas são suas, não deles. E em breve, como já lhe informei, será avisado do dia e horário em que vai sofrer uma intervenção.
- Meu Deus...a Senhora é tão injusta...
- Senhor Antônio, atenção às palavras. Posso punir o Senhor por desacato.
- Desculpe, desculpe. Não volta a acontecer. Senhora Juíza...
- Tem alguma dúvida Senhor Antônio?
- Tenho sim Senhora Juíza.
- Pode perguntar
- Posso saber em que consiste essa intervenção? Estou um pouco receoso.
- Não esteja. Vou lhe explicar. Já era minha intenção fazê-lo.
- Obrigada.
- Senhor Antônio, a intervenção é algo muito inovador, com recurso à inteligência artificial. Já ouviu falar na inteligência artificial?
- Sim, já ouvi. Meu filho, esperto como ninguém diz que tem conseguido grandes avanços na faculdade utilizando essa inteligência artificial. Tem tido cada nota Senhora Juíza. A Senhora precisa ver. Só acho estranho que não sabe fazer nada em casa.
- Senhor Antônio, desculpe interrompê-lo mas temos de avançar. Já temos problemas que cheguem com o Senhor. Como eu estava dizendo, o Senhor vai fazer uma intervenção, com recurso à inteligência artificial, que lhe vai proporcionar capacidades que nunca teve.
- Senhora Juíza, isso dito assim parece bom...
- É muito bom Senhor Antônio. Talvez não como espera, mas é muito bom.
- Posso saber que capacidades, Senhora Juíza?
- Pode sim. Vou lhe explicar agora e terminamos a audiência em seguida. O Senhor Antônio, sempre que pensar, desejar ou começar a fazer as coisas erradas e graves que fez e faz às mulheres, vai sentir o que as mulheres a quem fez os horrores já relatados ontem, sentiram. As mesmas dores, os mesmos medos, as mesmas humilhações e vai ficar com os mesmos traumas. E não passa mais, o que quer dizer que vai acumular dores e traumas pela vida fora. Nada se vai apagar nem diminuir – tudo se vai somar na rapidez e intensidade que os seus desejos vierem.
- Não entendi bem Senhora Juíza.
- Vai entender melhor depois da intervenção. É tudo Senhor Antônio.
Ana Santos, professora, jornalista
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