Conto “ORNITORRINCOS UCRANIANOS”
Natasha olhava atentamente a chama da vela, no porão onde se abrigava das bombas quando as sirenes tocavam. Passeava com os olhos pelos olhos de todos – murchos. Eram olhos murchos de tanta tristeza. Mil vezes ela também havia permitido que seus olhos murchassem, mas hoje não. Hoje ela tinha achado na rua, depois do bombardeio da manhã, um livro com fotos incríveis de um animal inimaginável – um orn... pera um pouco – ORNITORRINCO.
Misturava vários bichos em um só: tinha bico de pato, pelos de cachorro, tinha nadadeiras, era meio agressivo e venenoso - mas punha ovos. Ovos! Como as galinhas da casa de sua бабуся – babuska – avó! E sua imaginação não queria mais murchar nada. Um “multianimal”, que poderia ser qualquer coisa, desde que se olhasse de um jeito diferente.
E foi o que aconteceu. De sua imaginação, a luz da vela, as sombras do porão e os murmúrios das pessoas que dividiam o espaço com ela naquele momento, Natasha imaginou o sol, calor, um céu sem nuvens e todas as pessoas na rua – bem no meio, sem carros - brincando de tudo o que quisessem e imaginassem. Ela tinha o seu lago e dentro dele, ornitorrincos – todos mansinhos – que vinham à beira da água e lhe piavam brincadeiras. Nadavam juntos e eles não a deixavam afundar demais na água doce, que ela bebia com quase sofreguidão, enquanto eles a olhavam espantados com tanta sede.
Que frutas deliciosas haveriam na Austrália? Como não sabia de nenhuma, imaginou morangos que beiravam seu lago. E sua бабуся lhe fez chantily para comer com eles e também os comeu com açúcar e logo lembrou de seus amiguinhos que também ganharam moranguinhos doces.
Sua barriga roncava tanto que ela imaginou que afinal os ornitorrincos deveriam roncar, rosnar ou ronronar - nunca piar. E ignorou a chuva, a neve – ignorou até o barulho das bombas, a estupidez dos adultos, a casa que tremia, os gritos, as sirenes, o frio terrível sem eletricidade, sem água, sem piedade. Lá estavam ela e seus ornitorrincos australianos – australianos? Não! Seriam ucranianos! Se nasceram de sua imaginação, poderiam ser de qualquer lado do mundo e ela os queria na Ucrânia! Os levaria para a escola, eles nunca a picariam e ela lhes ensinaria alguns truques, como fazia com seu cachorrinho que morrera no primeiro bombardeio que lhe destruíra a casa.
E por toda a noite seus olhos piscavam, cochilavam, ela pulava do chão com os bombardeios, mas logo a imaginação a envolvia e seus ornitorrincos ucranianos acalentavam os poucos momentos de sono tranquilo que podia ter entre os horrores. Sua avó ela vira em pedaços quando sua casa explodiu. Mas naquele momento Natasha era feliz, extremamente feliz - como só as crianças conseguem porque só grandes espíritos livres conseguem se enlevar assim.
Naquela noite, os ornitorrincos lhe envolveram a alma, a vida, protegeram seu sono e ela percebeu que na vida, precisava-se de muito, muito pouco para se sentir verdadeiramente feliz. Uma vela, as sombras, sua imaginação e os ornitorrincos. Muitos. Uma lagoa inteira, cheia deles. Sua vida sem bombas. Felicidade, de novo...
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Aproveitar”
Ana finalmente percebe que a vida é finita. Sabia que ia morrer um dia, mas agora sente que isso vai mesmo acontecer. Percebe que tudo o que faz, sente, pensa, vive, vai terminar. Talvez para ir para outro lugar, não sabe bem. Mas o que é fato é que precisa aproveitar bem e saborear bem, no tempo que falta. Como viu num filme, resolver as coisas enquanto aqui está. É que tudo vai mesmo terminar para ela. O mundo? O mundo seguirá, as pessoas também. Mas ela terá de ir embora, quando o seu momento chegar. Aproveitar é tudo o que tem.
Ver o sol nascer, ver o sol se pôr. Adormecer a ouvir a chuva, enrolada numa manta, no sofá, mais uma vez. Sentir o calor do sol na cara, na pele. Mergulhar nas ondas do mar. Cozinhar. Recordar o que já viveu. Cantar. Rir. Olhar. Pensar. Sentir. Distanciar-se. Desapegar-se, afinal, nada é dela, nunca será. Falar com os seus medos, fazer amizade com eles. Guardar o que é bom de guardar, como escreveu a cantora Mafalda Veiga.
Não dar valor à vida é mais fácil do que dar. Não se esforçar também. Mas Ana continua a querer dar o máximo, até o “árbitro terminar o jogo”. Até ser “derrotada”. Até não ser mais possível. É assim que sabe que valeu o esforço. Que tentou tudo. Que não teve mais para dar. Que esgotou todas as possibilidades.
Chorar. Sempre gostou de chorar e agora gosta mais ainda. Sabe bem, acentua os sentimentos, as sensações. Sente-se bem viva nesses momentos. Aprendeu que chorar era para fracos mas com a vida aprendeu que é importante fazê-lo - chorar. E nada tem a ver com fracos ou fortes.
Tem muitas perguntas que nunca terá respostas. Mas é feliz enquanto consegue fazer algumas coisas. Acordar. Beber água. Caminhar sem dor. Comer comidas que cozinhou, mastigar e engolir. Trabalhar, aprender, produzir, todos os dias um pouco. Tomar banho sozinha. Vestir-se sozinha. Ser capaz de falar, de se expressar. Ter vontade de coisas que consegue concretizar, como lavar e comer uma maçã, sem precisar de pedir a ninguém. Terminar os dias com algo para terminar no dia seguinte.
E outras vezes o medo invade, cresce. Perde o chão. Pergunta-se se vai aguentar tudo o que vem. Se vai gostar do momento da partida. Se o vai entender. Se vai fazer sentido. Se vai sentir saudades.
Nada controla. Nada sabe.
Ana Santos, professora, jornalista
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