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2 Contos: “DANDARA, A GUERREIRA” e “Vida traiçoeira”


Conto “DANDARA, A GUERREIRA”

- Acho que seu vizinho não está podendo cuidar da cadelinha dele... Ela anda abandonada na parte de cima da casa, tudo cheio de cocô e ninguém aparece pra limpar...

Foi assim que um capítulo novo da minha vida começou.

- Olha, eu perdi uma cadela e jurei que nunca mais teria outra... foi uma coisa terrível, uma perda daquelas e gastei tudo o que tinha e mais alguma coisa...

Poucos dias depois, outro pedido do vizinho e depois mais outro e outro.

Falamos com a cuidadora do doente e ela nos pediu pra ficarmos dois dias com ela – Dandara – guerreira na vida humana e – ora veja só - também canina.

O combinado era que naquele final de semana ela teria tudo – comida, caminha, estava com os remédios em dia, tudo ok. Ela chegou tão ansiosa... nem sabia aceitar beijos. Qualquer ruído mais alto e ela se assustava. E eu, que tinha saído de uma loba de 1,60 em pé e 50 quilos, olhava aquele negocinho peludo e assustado de uns 7 quilos, sem saber como aquilo tudo cabia num corpinho tão pequeno.

Os dois dias viraram semanas, que já são meses. Era uma espécie de golpe, onde a intenção real era “desovar” a cadelinha em qualquer lugar. Minha decepção com os humanos continua crescendo. São mesmo incompreensíveis e nessas horas, pode-se dizer, detestáveis.

De algum modo, essa estada com a gente, aqui em casa, a fortaleceu emocional e fisicamente. A guerreira Dandara, agora pula alegre pedindo comida, dorme bastante e cuida da casa sem dar um latido sequer. Ainda bem, porque nunca tive cachorros que latem muito e ia estranhar.

O ponto é: Quem quer Dandara, uma border colie esperta e independente? Deve ter algum trauma porque um dono capaz de abandonar seu cachorro carregará um karma bastante grande para muitas outras vidas. Meu coração ainda não consegue se imaginar perdendo outro bicho. Mais dantesco ainda é o quadro que o dono criou porque ser capaz de enganar, abusar da confiança, da boa vontade, quando ouve claramente o que não se quer, não se é capaz de suportar que aconteça é inominável. Mas lá está: ele usou a boa vontade da gente, aqui em casa.

Olho Dandara: todos os dias de manhã, nos vemos e logo eu a pego pela cabeça e cheiro mil vezes o seu focinho. É nosso momento “conversa íntima”. Ela pula na direção da cozinha, lhe faço um pratinho de ração e ela nos espera tomar café para sairmos. Todos os dias é assim. Uma rotina simples, mas com olhares. Uma cilada onde todos os daqui de casa e ela fomos vítimas da mesma falta de amor.

- Quem amaria Dandara?

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “Vida traiçoeira”

Uma rua. Tranquila. Depois de vários anos, aquelas duas, conseguiram unir os vizinhos para resolver problemas que afetavam a todos. Um terreno abandonado, cuidavam. O correio vinha entregar num dia que não estavam, algum vizinho ficava com a encomenda. Um filho agrediu a mãe na porta do prédio, todas as mulheres da rua ligaram para a polícia. Um vizinho ficou doente, quem cuida da cachorra dele enquanto o dono se restabelece? Alguém falou que existia uma cuidadora. Todos recuaram e voltaram para a sua vida. Tinha alguém para cuidar. Acontece que passado algum tempo, um dos vizinhos, que morava no prédio em frente, avisou que a cachorra estava sozinha passeando para lá e para cá, num espaço cheio de cócó. Pelos vistos o vizinho estava hospitalizado e a cachorra ficou sozinha. Alguém – uma cuidadora, vejam só - ia deixar comida e água de dois em dois dias e a expectativa sobre o estado da bichinha era preocupante. Foi informada a cuidadora que se fosse desejo do dono, as vizinhas do lado podiam tomar conta da cachorra por uns dias, enquanto estava internado. Por razões profissionais e pessoais, as vizinhas disseram que ficariam apenas uns dias com a cachorra mas sem arcar com as despesas de saúde e alimentação. Muito menos ficariam com a cachorra para sempre. Hospedar, passear e cuidar, fariam por carinho ao vizinho, mas era só isso. O vizinho, quando voltou para casa, agradeceu o gesto das vizinhas, se emocionou, agradeceu e se responsabilizou pelas despesas. Tudo seguiu meio aos trancos e barrancos porque as vizinhas cuidavam da bichinha, amavam ela mas não podia ser para sempre. Não mais conseguiram ter oportunidade para falar com o vizinho e a interlocutora começou a mudar o discurso – que não havia dinheiro, que a cachorra não podia mais voltar para o dono, etc. O etc foi triste – as vizinhas foram ficando meses com a cachorra sem informações sobre vacinas, prevenção de vermes, prevenção de pulgas e carrapatos. Na verdade, com informações de que estava tudo bem, tudo tratado, tudo prevenido. A cachorra começou a comer grama – vermes. A cachorra começou a coçar-se constantemente – carrapatos. Quando avisaram a interlocutora, receberam a resposta de que não havia dinheiro. A bichinha só podia tomar banho de mês e meio em mês e meio, uma dificuldade para aceitar que era preciso dar-lhe urgentemente medicamentos para os vermes, carrapatos e pulgas. E de repente a bomba – o dono afirma peremptoriamente que não pode mais ficar com a cachorra, não quer mais ficar com ela e não tem dinheiro para pagar as despesas de alimentação e saúde da bichinha.

Um favor se transforma num problema. Uma ajuda se transforma numa despesa. Um homem civilizado, extremamente educado, se transforma em nada. Uma interlocutora com a função de cuidadora, mas que não cuida. Olá vida traiçoeira.

Ana Santos, professora, jornalista

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