
Conto “DA FALAÇÃO A AÇÃO FORA DE HORA”
O mundo muitas vezes era totalmente incompreensível pra ela. Na ONU muita falação e pouca ação; até o Netanyahu, mesmo vaiado e desprezado, fez discurso pra botar moral, fingindo que aquele morticínio tinha alguma coisa de certo ou nobre.
Por outro lado, os homens hetero começaram a ter “chiliques comportamentais”, resolvendo tudo no grito e na mão, que incrível...
Não se via mais homem falando em esforço, em ajuda e muito menos em gentileza. Tudo é na base do “ganhe de qualquer jeito”. Assim, num sábado o ex-marido mata a mulher no salão de beleza e sai correndo, no dia seguinte o assessor da um político ataca (pelas costas) outro assessor no final de um debate - e não tem moral da história. A moral da história virou a mulher dizer um palavrão – como se os homens que estiveram exatamente no mesmo lugar que ela (o debate), não tivessem falado e feito coisas muitíssimo piores!
- Ser mulher é incrivelmente cansativo...
Ainda um dia antes, tinha visto uma reportagem onde um padre português, na calada da treva da hipocrisia social, chamava crianças de orfanato para confessarem suas “porcarias”, de mãos postas – não no peito, como de costume – mas apontadas, próximas, quase tocando “suas partes”, como se dizia antigamente.
Descobriram e começou de novo a falação. Assim, a denúncia foi sendo paulatinamente esvaziada...
- Mas se você pensar que isso é coisa de português, não esqueça dos jogadores de futebol brasileiros, hein? Ou do marido francês que convidava os amigos para as sessões especiais de estupro da sua esposa, dopada por ele.
- Pensou que foi uma “fraquejada” do francês? Bem, o “coitadinho fraquejou” umas CEM vezes!
- Há um momento de falação, mas há um momento de compreensão, que passa para momentos de ação. Sem ação ou com ações que podem ser manipuladas pelo dinheiro, não há justiça ou sensação de justiçamento, o que nos primitiviza, essa é que é a verdade.
Ouvir que há povos que perguntam ao culpado de um crime onde erraram, é uma coisa que não daria certo por aqui, já que a culpa sempre é da mulher. Já vivemos isso. Então essa forma de agir funciona apenas no mundo do gênero masculino, o que é sempre muito cansativo, pouco pedagógico e ofensivo.
- Porque quando a coisa é com o nosso gênero, não tem perdão pra ninguém que pareça mulher, meu filho. É estuprada porque estava se oferecendo com aquela roupa apertada, porque deu mole, porque não sabe escolher homem. Morre porque casou pra não ficar solteirona ou não quis casar com um cara que a amava; morreu porque era mulher trans; morreu porque era casada, porque era solteira, porque ela negra, branca, asiática e indígena; porque era criança e porque era velha demais – ou de menos.
O fato é que para os homens existe sempre a falação, a justificativa, mas pra gente vem sempre a pichação, o escárnio, o ridículo e a culpabilização.
- Aff... Por que os homens nunca querem falar desse assunto pra valer?
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “O celular na hora H”
Era o dia. Desta vez ia poder fazer o que todos fazem há décadas. Nunca tem tempo, nunca dá, nunca está perto, nunca, nunca, nunca. Pois hoje o nunca não tem espaço na vida dela. Hoje, é dia de fazer o que todos conseguem fazer tranquilamente.
Terminou um trabalho perto de uma igreja, grande, linda, tranquila. Ainda por cima com um espaço verde em volta e porteiro controlando a entrada. É hoje. Ligou a avisar para casa.
- Aninha? Já terminei mas vou aproveitar para me sentar uns cinco minutos na igreja aqui do lado. Pode ser? Logo em seguida vou para casa almoçar, não se preocupe.
- Claro! Que bom que finalmente vai conseguir ficar sentada, calmamente, pensando na vida. Você sempre quis fazer isso. Aproveite. Eu aguardo com calma, não se preocupe.
Subiu o caminho de terra em direção à igreja. Quando chegou na porta percebeu que não tinha ninguém dentro. “Meu Deus, uma igreja só para mim, nesta cidade tão cheia de gente.”- pensou. Entrou, ainda ficou meia indecisa na escolha da cadeira. Vou para perto do altar, fico perto da porta? Meu Deus, que luxo. Decidiu sentar-se numa das cadeiras do fundo, para poder apreciar a igreja e ficar mais perto da porta. Lembrou imediatamente da mãe. Começou a relaxar. Olhava a igreja linda, vazia e fresca. Que luxo. Estava até agitada por estar a poder viver esse momento.
De repente, percebe que entra uma pessoa na igreja. Normal. Viu que era uma mulher. Maravilha. Parecia mulher da rua, pela roupa e pelo cheiro. A mulher passou por ela e sentou-se bem no assento da sua frente. Ela nem estava a entender bem aquilo. “Como é? Na minha frente?” Uma igreja enorme vazia e a mulher escolheu precisamente o lugar na sua frente? Passou a ver apenas as costas da mulher. Respirou fundo, tentou relaxar. Pensou que a sua mãe lhe diria para ser nobre e manter a calma. Para rezar, pedir aos céus o que tinha ido pedir e deixasse a mulher no lugar que ela quisesse. Apesar de estranho, iria pedir-lhe que não fizesse confusão. Estava neste processo, nesta luta, quando aquela mulher começou a rodar, ficou sentada lateral, olhou-a pelo canto do olho e falou:
- msjdgdyetfdbfneijfie
- Como?
Choramingando a mulher tentou fazer-se entender...
- dkbbbc, estou grávida, preciso de ajuda, jgdrev, fwrdgd, ...
- Oh amiga, você não teve sorte desta vez, não. Eu sou estrangeira e não tenho dinheiro nem para mim, quanto mais para ajudar outras pessoas. Me desculpe.
A mulher começou a repetir tudo de novo e fez um movimento bastante ousado – de equilibrista de circo. Enquanto repetia que estava muito mal, grávida, com isto e aquilo, levou o indicador ao lábio superior, levantou o lábio e mostrou, enquanto falava, os seus dentes da frente, estragados, escuros e partidos, dizendo:
- Tenho problemas
Ela nem queria acreditar naquilo que estava a assistir. Não queria acreditar no que aquela mulher era capaz, para que os padres, ou os controladores da igreja, os que observavam pelas câmeras de vídeo, não pudessem perceber. Menina, que talento! Ficou sem jeito, sem ação. Como sair daquela encrenca?
- Amiga, lamentavelmente estamos as duas na mesma situação. Eu vim pedir ajuda na igreja e você veio pedir ajuda a uma pessoa na igreja – eu. Mas, que tal as duas rezarmos e pedirmos a Deus para nos ajudar? Acha bem? Estamos no lugar certo para isso.
A mulher, olhou para aquele ser estranho, sem entender bem, mas de alguma forma concordou, virou-se para a frente e ficou quieta, sem se mexer, sem fazer um som.
Ela, desolada por não conseguir realizar o seu sonho de estar pensando na vida, sozinha, sentada num banco de uma igreja vazia, nem conseguia pedir ajuda, nem pensar em nada. Apenas via umas costas de outra pessoa e sentia um cheiro forte a rua, a falta de banho que vinha daquela mulher. “Como me vou safar disto?” Pensava.
E foi nesse momento que Deus lhe enviou sua irmã mais velha. Seu celular começou a tocar. Com a desculpa de não fazer barulho na igreja e antes que aquela mulher quisesse lhe pedir o celular ou outra coisa mais, saiu da igreja, tirou o celular da bolsa e atendeu.
- Oi?
- Desculpa estar a ligar-te. Se calhar estás ocupada.
- Não, não. Ligaste na hora certa.
Ana Santos, professora, jornalista
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