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2 Contos Bombásticos


Fotografia de Lisa Kristine - @lisakristinephotography

Conto “A VOZ DA CULPA”

Poder-se-ia dizer que aquela era uma mulher informada, antenada com a vida. Mas a cada vez que abria a boca, as coisas que dizia seriam tresloucadas se não fossem criminosas. Falava que a eleição – aplaudida pelo mundo afora – tinha sido fraudada por alguém que não queria passar ao povo o “código fonte”.

- Mas o que é código fonte, você sabe?

- Como pode procurar uma coisa que você ignora o que seja? Como pode invadir e destruir os três Palácios, na Praça dos Três Poderes em nome de alguma coisa que você nem se interessou em descobrir o que era, se cabia num bolso (como o estranho pendrive das Arábias) ou se era do tamanho de uma geladeira, carro, avião? Como contribuiu para montar uma bomba? Como achou uma boa ideia colocá-la num posto de gasolina, à beira do aeroporto e na véspera do Natal? Não te ocorreu que milhares de pessoas morreriam? Como saiu de casa pra acampar no estacionamento de um quartel, como achou normal – ao invés de mover um processo, ir à justiça – bradar por um golpe de estado, fazer lives da invasão, gritando palavrões?

Eram tantas perguntas...

Mesmo com aquele ar de superioridade que a tornava mais tresloucadamente ignorante da realidade, a montanha de perguntas se acumulava em sua mente e, embora continuasse a acreditar que estava certa – se estivesse errada, teria sido o erro mais colossal da sua vida, não seria orgulhosamente uma presa política e apenas mais uma criminosa e todos os seus sonhos de candidatura futura ou trabalho garantido num gabinete de político virariam areia – terrorista.

Seu grupo tinha facilitado armas, C4 e agora tinha que se haver com o estranho mal estar que vezes sem conta sentia ao perceber que afinal eram os bandidos que estavam armados até os dentes. Ninguém saía mais de casa.

O celular acendeu e seu coração também. Nada de percepção, nada de consciência, nada de culpa. Embora houvessem tiros por todos os lados, ela tinha certeza de que mesmo sem entender os motivos verdadeiros, o líder os conduziria para um lugar bom. Sua barriga apertava pensando que o lugar que lhe parecia destinado era um presídio, diante de tantas evidências de que todos as grandes mentes por detrás daquilo queriam simplesmente desaparecer e ela se sentisse abandonada, esquecida, invisível.

Não queria responder nada. As palavras lhe saíam contra a vontade da boca. As horas passavam, lentas. Então aquelas pessoas a achavam idiota? Ela seria idiota? Seria possível errar tanto? Seria criminosa, se achando uma heroína? Que lhe poderia reservar o futuro, já que seus heróis tinham simplesmente evaporado? Onde estava o apoio dos líderes, dos chefes, dos mitos?

- Onde estão todos?

Tentou manter a dignidade ali, já que era o que lhe restara. Sentia o aperto do “não devia”, mas era tarde demais para tudo. A vergonha de seus pais, a sua.

- A minha.

Levantou os olhos. Não sabia bem como se justificar por aquilo tudo.

- Se um soldado tivesse nos avisado. Qualquer soldado mesmo um soldado raso...

Era tarde demais. Assumiu a culpa.

Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV


Conto “Paz interior”

- Aaaaanaaaa...

- Siiiim, Mãe?

- Está na hora da tua tarefa de hoje.

- Já vou...

Estava a tentar fazer “mindfulness” e a toda a hora era interrompida. Caramba...assim não dá... E a Mãe não a vai largar enquanto ela não for fazer as tarefas...

Há tanto tempo que todas as colegas fazem “mindfulness”, ou outras práticas de relaxamento, de respiração, de viver o momento, de atenção plena, Tai Chi Chuan, Yoga, Chi Kung, terapia, terapia familiar, constelação familiar, etc, etc, etc. Todas as colegas estavam “muito à frente” - pensava. Precisa aprender alguma dessas abordagens do mundo, dessas coisas que dizem que relaxam e te fazem viver melhor, contigo e com os outros. Até parece que existe uma dessa abordagens em que ela pode falar com a sua “criança interior”. Olha só que legal. Descobre cada coisa engraçada... Tem tantas coisas para perguntar a essa criança que ela foi um dia. Na verdade, a pergunta que mais gostava de fazer, entre todas as que tem na cabeça, é onde raio é que ela, Ana menina, deixou o dinheiro que a Mãe lhe deu para comprar as couves para o Natal, quando tinha 8 anos. Isso deu uma confusão... Ficou de castigo, a Mãe e o Pai desentenderam-se e o Natal teve bacalhau sem couve – uma aberração portuguesa familiar. Também já agora podia aproveitar para perguntar se o Jorge gostava mesmo dela. É que aquele cara, por quem ela foi apaixonada por tanto tempo, lembrou-se de lhe dizer um dia que também gostava dela, mas ela achava que era tanga, achava que o que ele queria era dar umas voltas e depois voltar para a namorada de sempre. Pera aí que isto até dá jeito: respirar no mesmo ritmo sem ter problemas nem ninguém a chatear, uma vida sem percalços, agrada-lhe. Não pensar em nada – tem tantos trabalhos de casa que as professoras enviaram para essa semana, que a cabeça dela parece que vai estourar e ter a possibilidade de nada fazer, é bué de bom. Ficar deitada ou sentada – a vida dela é a correr de um lado para o outro por causa da escola, dos treinos de natação, das aulas de piano, das aulas de grego, dos escuteiros, das tarefas que tem de cumprir em casa, que ficar deitada ou sentada, sem fazer nada, sem pensar em nada, é o paraíso. Mas sempre que está quase a conseguir esse viver o momento, acontece qualquer coisa.

- Anaaaaaa....

- Só um minuto, Mãe...

- Estou a chamar há mais de 20 minutos.

- Eu sei Mãe, mas estou a terminar algo importante.

- Os trabalhos de casa? Ainda os trabalhos de casa? Não me digas que ainda não os terminaste.

- Ainda nem os comecei...

- Ana, Ana, ....estou a ver a vida andar para trás...

- E eu estou a tentar ver o momento.

- O que disseste? Agora respondes desafiadoramente à tua Mãe? Como é isso Ana? Nem estou a acreditar.

- Não Mãe. Desculpe. Não foi o que quis dizer. O que quis dizer foi que estou a tentar viver o momento. Sabe aquelas coisas que ensinam na televisão? Que as minhas colegas mais ricas todas sabem fazer? Estou a tentar mas a Mãe está sempre a chamar e eu não estou a conseguir. Sempre que estive quase, quando estava quase, quase, a Mãe chamava. É que é preciso estar em silêncio, deitada ou sentada, sem fazer nada e sem pensar em nada e nesse momento, viver o momento.

- Ana, a vida tem muitas coisas para resolver. Não existe tempo para esse nada fazer. Isso de ficar parado é lá com as tuas amigas ricas. Vou te perguntar pela última vez: vens lavar a louça já ou eu vou ter de ir aí buscar-te pelas orelhas? E acredita que vais sentir o momento, ah vais, vais. Não vais esquecer mais pela vida fora.... Três, dois, um...

Ana Santos, professora, jornalista

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