2 Contos: “A Velha e o Golpe” e “Não há duas, há três”
- portalbuglatino
- 11 de jan.
- 5 min de leitura

Conto “A Velha e o Golpe”
Sua família se reuniu em torno da TV para ver um golpe de estado em andamento, em 2022 – uma coisa incrível, um embrulhamento no estômago. Em seus muitos anos, jamais teria imaginado ver um golpe em andamento pela TV, o computador e o celular – tudo ao mesmo tempo. Após aquele desespero, a data ficou como uma coisa quase festiva, já que todos tinham escapado da fome de poder dos militares. Daquela vez, claro.
- Vó, antigamente você via na rua a tal polícia montada dando porrada em estudante? O que era PE mesmo? E DOPS? Isso tudo existiu? Mas parece mentira...
- Uma vez, sua avó estava no Botafogo, lá no Rio, enquanto esperava abrir o portão de um show de música. Aí, do nada, apareceu a polícia montada, cercou a fila e deu na sua vó uma cacetada nas costas!
- Pelas costas? Isso é coisa de homem? Mas... o cara não era da polícia?
- Por isso mesmo. Até hoje é assim. Muito por causa da ditadura, até hoje a polícia se confunde e acha que autoridade significa bater em qualquer pessoa que ela queira. Cisma e mete o pau. Assim. Mas comigo, foi uma cacetada que me jogou no chão e parou. No caso dos estudantes pró-democracia, era cadeia, tortura, arrancar unha, dar choque nas partes íntimas...
- Ai, vó, para! Vai dizer que vocês sabiam o que acontecia?
- Quando a manchete do jornal era uma receita de bolo, por exemplo, todo mundo sabia que tinha acontecido uma coisa braba. Na época eu era adolescente, mas a gente lia nos olhos uns dos outros. Pelas proibições na casa da sua bisa, homens estranhos que entravam na nossa escola, perguntas furtivas... Você sabe o que é ditadura? Tem ditador no Brasil?
- E aí, você falava o quê?
- Não falava nada nunca. Me fazia de besta sempre. Todo mundo era um pouco treinado a se fazer de moscão. Ninguém queria o destino dos que sumiam.
- Tinha tortura mesmo?
- Da braba. Nem quero te contar porque não é coisa que um humano faça com outro. É coisa da besta, do mal encarnado em gente. Coisa de bandido, tipo traficante ou miliciano dos piores. É por isso que a polícia precisa de um treinamento especial, onde as pessoas façam parte da sociedade sendo pobres ou ricas. Pra polícia não é assim – ainda. Mas algum dia, há de ser.
- Você viu gente morta?
- Às vezes um corpo boiava, na Urca, sabe? Meu professor de geografia, no cursinho pré-vestibular, saiu da aula e sumiu. O presidente era o carrasco Médici, ruim como o mal eterno. Tinha cara de ruim. São muitas histórias que sua avó sabe porque ela viu uma parte na rua, tinha medo de ler livros de política e ser presa, falar sobre o assunto ditadura então nem pensar. Mas todo mundo sentia. Não sei como tem gente que fala que é a favor da censura, da tortura. Quem fala isso não sabe nada. O País sendo exterminado e a pessoa lá comendo mosca. É por isso que ainda tem tanta coisa errada, filho. Tivemos pouca democracia seguida. Esses caras matavam e depois pediam arrego na justiça. E o pior é que davam! Por isso que agora, depois de ver aquela invasão em Brasília, a gente não pode mais vacilar. Quem for julgado e condenado, tem que ir preso e pronto. Não apareceu anistiado militar aqui que tivesse entendido que ninguém no mundo merece morrer por amar a democracia a ponto de lutar por ela. Tem que ficar a lição, filho. Pra mil gerações de golpistas terem respeito pela liberdade.
- Sem anistia.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Conto “Não há duas, há três”
Olha gente, eu me considerava uma pessoa de sorte. Até que vi aquele trem saindo lentamente da estação, como se fosse um sonho.
“Como é mesmo?”
Não queria acreditar.
Acordei cedo, sai com imenso tempo para chegar à estação com tempo, mas aquele inesperado trânsito infernal naquela hora da madrugada me apanhou de surpresa. Tentava acreditar que chegava a tempo, sempre seguindo, vendo o relógio avançar demasiado rápido. O tempo avançava e eu tentando me comportar como se tudo estivesse bem. Estacionei, corri o mais rápido que pude, apareceu tanta gente na minha frente que parecia complô. “Chega para o lado meu povo, que eu preciso apanhar esse trem”. Cheguei bem na hora, na plataforma e o trem ali estava. Respirei de alívio. Ao mesmo tempo aquele trem silencioso parecia estar ficando mais pequeno. O que se passava com meus olhos? Nada. Era o trem silencioso, moderno, pontual, miserável, que se afastava. Ninguém na plataforma para além de mim, uma sensação se incapacidade, de ver a vida seguindo, me dilacerando o coração e meus compromissos profissionais. Meu Deus, que trapalhada monstruosa isto vai me causar...
Podia dizer que foi esse o único momento menos sortudo, mas lembrei de quando lavava o carro, num daqueles lugares europeus onde você coloca a moeda para aspirar o carro por dentro, onde sacode os tapetes e depois coloca moeda para molhar, ensaboar, lavar e encerar o carro. Fazia aquilo tão bem feito sempre, aproveitando o tempo de cada moeda, para não ser muito caro. Ainda hoje não sei porque naquele dia, depois de tudo finalizado, lembrei de passar um pano nos vidros e numa das portas de trás, encostei meu corpo no travão da porta – carro antigo. Não reparei no que fiz, mas nunca mais vou esquecer o barulho que ouvi, quando bati a porta, para abrir a porta do condutor e ir embora. Era aquele barulho de fechar todas as portas, o antigo processo chamado de fecho centralizado. Meu coração ficou imediatamente e igualmente centralizado. Olhei o volante e a chave na ignição. Minha carteira dentro do carro e eu de fora, sem nada nas mãos. Aquele carro que eu tanto amava, quieto, silencioso, fechado, com todos os meus pertences dentro. Você fica um pouco em transe, em suspenso, tentando perceber se aquilo é verdade ou se você está inventando, ou sonhando. Sei lá eu...
Lembro aquela frase bizarra, parva e cômica que eu tinha a mania de dizer quando a vida era apenas divertida: “Não sabia se me lavava, se me perfumava” - traduzindo, significa que não sei o que fazer, se vou se fico, se fujo ou se enfrento. Não tem fuga porque a vida te coloca perante a situação sem poder pedir ajuda. E não te dá muito tempo porque a fila de carros para lavar era imensa e as buzinas começaram a tocar. Nem queria acreditar que a melhor atitude, depois de pensar em todas as possibilidades, era a de partir um dos vidros do carro, para poder abrir uma porta. “Meu querido carro, me desculpa, mas vou ter de te magoar.” Meu carro acho que não achou muito boa ideia porque demorei uns 20 minutos para conseguir partir um dos vidros laterais. Nunca pensei que fosse tão difícil. Ou talvez eu não tivesse jeito para essas coisas. Finalmente peguei numa pedra enorme, e aquele estrago miserável, aquele barulho, aquela quantidade enorme de vidro espalhada pelo chão, dentro do carro. Que dor minha gente, que dor! Mas que alívio, que alívio!
Entrei no carro, fugi dali. Em casa limpei o carro por dentro, aspirei de novo e fui colocar um vidro novo. Tanta poupança de moedas, tanta velocidade para não gastar muito dinheiro a lavar o carro para depois gastar uma fortuna num vidro novo.
Talvez não seja uma questão de sorte, talvez seja uma questão de continuar a aprender a receber surpresas na vida e saber resolvê-las o melhor possível.
- Ana!!!!
- Oi????
- Já terminaste o conto?
- Terminei agora mesmo.
- Então vem cá porque ficamos sem luz e sem água, é sexta-feira, a noite está chegando e precisamos agir rápido, para não termos um final de semana complicado.
- Parece que adivinhou.
- Que adivinhou o quê?
- Deixa para lá... Já vou...
Ana Santos, professora, jornalista
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