Que temporada! Outro filme primoroso! Ao invés de realizar um documentário falando da importância da mão do artesão como meio de expressão da história e raízes culturais de um país – o que já abriria inúmeras portas - o diretor de Retábulo mergulha nas complexidades das formas de convívio humano e na nossa busca de quem somos, a quem amamos e como amamos, de uma maneira intensa e explosivamente silenciosa, num filme introspectivo e que deixa perguntas importantes ao espectador.
Os padrões sociais de um povo podem “obrigar” seus membros a algum tipo de comportamento? É aceitável que não exista nenhuma individualidade de escolhas no convívio humano? Por outro lado, a nossa admiração por um pai ou mãe é capaz de enfrentar e ultrapassar padrões sociais muitas vezes obtusos? Ou ainda por mais outro lado: é mais fácil enfrentar padrões obtusos ou mentir para continuar sendo aceito socialmente?
Cada uma dessas questões, tendo o manto do amor como suporte silencioso para tudo o que vai acontecer é o pano de fundo para um filme forte, de grandes emoções e de sofrimento e julgamento permanentes.
Mais uma vez eu aponto (com repulsa quase) a ideia obsoleta de que a sociedade tem “princípios de moral e bons costumes que criam castigos” para os que não os cumprem – principalmente porque os homens sempre falam de sexo e de traição com indisfarçável alegria e naturalidade nessa nossa estranha sociedade machista - como se trair fosse parte do DNA masculino. E isso partindo do pressuposto de que – pela lógica – eles são educados por mulheres e elas são diretamente afetadas pelo machismo que ensinam às suas crianças.
Homens criados com um nível tão alto de machismo agem como milicianos que “vão colocar tudo em ordem”. Mas como assim? Há ou deveria haver uma ordem de restrição?
Por dentro da arte de fazer retábulos - fragmentos 3D das famílias tradicionais peruanas - o filme nos conta a história de tradições que tentam impedir pessoas de serem quem são. Que indiretamente as obrigam a mentir. E que as pessoas que amamos, ao mentirem, arranham nossos “retábulos emocionais”, nossa admiração por figuras de amor eterno como a paterna, por exemplo.
A decepção é capaz de arranhar quanto a uma imagem? Mas a perda de um grande amor pode arranhar mais do que uma decepção? O filme deixa muitas perguntas importantes que devem ser feitas para que a nossa sociedade realmente comece a trabalhar em si mesma a aceitação da diferença.
Por mostrar raízes de arte e de comportamento tão sul-americanas, o filme já mereceria ser exibido; porém, seu lado mais profundo é, sem dúvida, nosso universo humano e por isso merece ser visto e debatido por todos. Uma diferença – se não há crime ao redor do fato – não pode ser a causa de espancamentos ou linchamentos morais. Discordar é apenas não ter a mesma opinião, o mesmo conceito sobre um assunto. Ninguém – ninguém mesmo – pode ser molestado por discordar. E o amor verdadeiro tem raízes sempre mais profundas que o preconceito, ainda bem!
Assistam o filme. É diferente. Mais do que isso: é importante.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Um filme que mostra a beleza geográfica do Perú, em particular de Ayacucho, a deslumbrante paisagem andina. Maravilhosamente falado em quéchua, língua indígena. Divulga a beleza, simplicidade e raridade da arte de fazer retábulos/caixas de recordações. Nos dá a possibilidade de conhecer a dureza de vida nas montanhas, os comportamentos e hábitos, as mentes fechadas por não terem alternativas de decisão e escolha para além do que o que sempre existiu no lugar. Muito rico, muito intenso para quem tem curiosidade sobre as diversas sociedades, modos de vida, culturas.
Aborda questões muito próprias de povos muito isolados. Os olhos e as ações que falam mais que palavras. Não ter com quem, nem ter o hábito de falar de assuntos diferentes, difíceis, chocantes, fraturantes. Esconder e viver em dor, crescer sem entender nem saber lidar com o que é diferente e sem ter referências, lidar com a vergonha de ser ou fazer algo inconcebível para um homem das montanhas numa sociedade extremamente preconceituosa, fechada, intolerante que quando rejeita algum comportamento, rejeita totalmente e de forma agressiva.
Aprender a arte do pai ou da mãe e seguir a tradição familiar de sobrevivência e patrimonial. A arte de fazer retábulos dificilmente é passada para pessoas que não sejam filhos dos artistas.
Um filme encantador, sendo triste. Imperdível.
O ano de 2020 para os Óscares será um ano de filmes estrangeiros extraordinários. Para mim todos merecem a estatueta porque, se para o mercado cinematográfico é importante ganhar prêmios, para o mundo, é uma prenda poder assistir e aprender com filmes como os que se fazem em todo o mundo atualmente.
Deixo aqui alguns comentários muito interessantes de Álvaro Delgado-Aparicio, diretor do filme: “O cinema pode e deve contribuir para a melhoria das condições de vida das pessoas. (...) Se eu contribuir para que uma pessoa, ao menos, compreenda a dor do outro, já terá valido a pena. (...) Como, às vezes, temos uma relação aprisionante com nossos pais e embora queiramos ter liberdade, permanecemos nesse modo de relação porque a dependência é muito forte. Nesses casos, como você se liberta? (...)quando adolescentes, idealizamos nossos pais, mas eles não são como imaginamos. E como lidamos com isso, especialmente quando um adolescente está buscando sua própria identidade?”
Se filmes como o “Parasita” mostram onde pode chegar um ser humano numa sociedade cosmopolita, este filme te mostra as dificuldades muitas vezes do “nada” numa sociedade isolada. Não teres mais do que o que já foi vivido ali e mais do que as regras do lugar onde vives. A dificuldade de aceitar tudo o que vais aprendendo como obrigatório, por vezes não concordar mas não ter nem saber se existem alternativas, a ignorância de lidar com situações fora do comum num lugar isolado e toda a intensidade de uma vida de adolescente.
Um filme aparentemente simples mas que aborda como pode ser a sociedade e como lidarmos com ela pode ser extremamente complexo.
Ana Santos, professora e jornalista
Informações sobre o filme:
https://www.imdb.com/title/tt7761590/
Espaço Itaú de Cinema - Glauber Rocha