Sérgio Vieira de Melo. Quem, num Brasil aviltado pela nenhuma administração, liderança ou mesmo preocupação federal com doentes, doença, mortos, enterros, pessoas, vivos, leitos, respiradores, sabe quem foi este homem? Quem, em meio a uma pandemia que afetou sobretudo as ideias e as disposições reconhece o papel que ele desempenhou no mundo? Sérgio se aprende na escola? Acho que não, mas devia. Num lugar onde os atuais pseudo-heróis pedem que a população se desproteja, se desguarneça, espanque pessoas, chute e xingue enfermeiros, Sérgio trabalhava para construir democracias, crenças numa sociedade mais justa, num mundo com menos fronteiras entre pessoas perdidas. Não que no Brasil existam hoje em dia muitas pessoas “achadas” que saibam o que vai acontecer, qual é a aposta certeira; a única aposta certeira aqui é que sendo pobre, sua vida está exposta à quase tudo. Mas Sérgio, ao lado da bandeira azul da ONU ocupava para reconstruir para, em seguida, entregar uma Pátria mãe mais gentil a seu povo. Corria sempre risco de morte, mas seu sorriso nunca se apagava.
Em dois documentários diferentes e complementares, uma justa, simples e merecida homenagem a um herói brasileiro. Engraçado que no Facebook o que mais vemos é promoção de heróis - como se eles não existissem no Brasil e tivessem que ser fabricados. Sérgio foi um deles e poucos o conhecessem.
Nas duas produções - que deveriam ser vistas de forma complementar - há uma preocupação real em situar um homem e seu destino, num lugar mágico como o Rio de Janeiro, que sai em busca de quem era e vai parar nas Nações Unidas, numa carreira de 34 anos de trabalho. Trabalho. Muito trabalho.
Muito emocionante sem alarde. Talvez porque os heróis saibam que aquilo é o seu destino, afinal. Ele morreu no Iraque, exercitando a sua capacidade de ouvir e negociar para reconstruir. Osama Bin Laden, num atentado a bomba que destruiu o prédio das Nações Unidas matou a ele e a mais 3 dezenas de pessoas mais ou menos. Quem, na escola, aprende isso? O nosso pseudo-herói atual sabe que para além de torturadores aposentados que ele insiste em levantar das covas e cadeiras de rodas existem heróis verdadeiros? Nós precisamos inventar mitos quando temos - quando o Brasil verdadeiro tem - verdadeiros heróis diários, que entregam suas vidas para minimizar o sofrimento de um igual, ali ao lado?
Não esperem nada “Spielberguiano” – afinal é reconstrução mesmo, com mortos e refugiados de verdade. As produções não são multimilionárias. Mas valem. Mostrem a seus filhos. Discutam a ideia de se ser um herói hoje em dia. Ser herói é aguentar o momento e ficar em casa. Ou ter que sair e enfrentar um super vírus como médico, como enfermeira, como lixeiro, carteiro, uber/taxista. É ser ajudado pelo seu vizinho também herói, que tem um pouco mais porque tem coração.
Nós somos heróis. Nós fazemos o Brasil. Nós somos Sérgio.
Ana Ribeiro, diretora de cinema, teatro e TV
Todos os brasileiros deveriam saber que Sérgio Vieira de Mello era um grande homem. Mas imagino que muito nem saibam que era brasileiro. Um enorme coração, um talento, uma energia sem fim na busca de direitos iguais para todos. Um homem digno, um homem profundamente respeitado no mundo. Pelo que fez por Timor Leste, os portugueses nunca o esquecerão. Muito menos os timorenses. Foi o salvador, foi o homem que podia ter ido liderar e decidir e foi colaborar e partilhar. Um eterno amigo do nosso povo. É chocante saber que morreu lutando pelos que precisavam de ajuda, fossem de que país ou cultura fossem, enquanto outros líderes brasileiros apenas querem mandar, apenas querem mandar. Não lhes interessa as mortes, a pobreza, a fome, a injustiça. Lhes interessa os seus interesses. E fazem o que estiver ao seu alcance para o conseguirem. Mentem, manipulam, destroem qualquer pessoa que os tente enfrentar. Já conheci alguns. Já tive um líder desses num trabalho que fiz aqui. Sei do que falo. Eles não querem competência. Eles não querem que o mundo seja melhor. Eles não querem que as pessoas sejam felizes. Eles querem mandar, querem ter razão e se você os enfrentar, porque as injustiças que cometem são vis e impossíveis de ver e calar, eles te perseguem, mancham teu nome, te demitem e desejam que termines na sarjeta. E vão subindo e subindo até lugares impensáveis. Mas as pessoas não ligam. Aguentam caladas. Coitadas, ela pensam que eles vão melhorar no silêncio. Pensam que vão ser favorecidas um dia, com as promessas enganosas que ouvem... E a sua vida vai piorando progressivamente. E, sem perceber, perdem tudo. Até a sua dignidade. Também vi disso. Pessoas que parecem ser tão educadas, tão justas, tão leais, que se vendem na primeira esquina para manterem seu trabalho. Eu fiquei com uma pergunta dentro de mim desde que vi tudo isso...”Conseguem dormir todos bem, orgulhosos das pessoas que são?”. Mas imagino que conseguem, com seus carros/jipes, suas casas de praia, suas famílias fachada, suas vidas loucas em “segredo”, suas fotos com seus amigos famosos do “instagram”, seus músculos comprados. Quando vejo Sérgio, um homem admirado pelo mundo, por dar a vida pelos menosprezados, maltratados, nossa! Um homem que enfrentou os líderes dos Khmer Vermelhos no seu habitat – a floresta que eles dominavam, no Cambodja/Camboja. Onde podia ter sido assassinado, sequestrado. Foi, reuniu, enfrentou, tentou. Insistiu durante meses, conseguindo que muitas pessoas refugiadas pudessem voltar para a sua terra. Isso não tem preço. Como não tem preço o que fez em Timor, o que estava a fazer no Iraque. Brasileiros, vocês precisam se olhar e encontrar estes brasileiros vossos pares que podem fazer o bem. O Brasil precisa muito disso neste momento. De pessoas sem sede de fama, sucesso, glória. Precisa de pessoas verdadeiras.
Me chocou ouvir alguns depoimentos de refugiados. Ouvir que o lugar onde você nasceu e vive deixou de ser seguro e que você precisa fugir para não morrer. E foge para lugares onde acha que vai encontrar melhores pessoas que te podem ajudar. Mas afinal, muitas vezes, você é excluído porque não é desse lugar. As pessoas ficam com medo de você, do que você sabe, da fome de viver que você tem, da energia que você coloca na sua vida. Porque você quer sobreviver. Qual é o mal disso? Qual é o mal de você saber o que os outros não sabem? Isso não deveria ser algo bom? Que ajuda? Porque se torna algo ameaçador e algo a esconder ou a destruir? Nós envelhecemos mas permanecemos infantis. Permanecemos meninos com medo de dar, de partilhar, de ficar sem nada. Mas afinal, não somos nada. Somos pó. E a vida é um instante. Pensemos nisso todos.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre os documentários:
Sérgio (2009)
https://www.imdb.com/title/tt1333656/
Sergio Vieira de Mello - O Legado de um Herói Brasileiro
https://www.youtube.com/watch?v=LJg5uD2tkjY
Diretor: Greg Barker
Sinopse: Figura carismática e brilhante negociador sociopolítico, o diplomata Sérgio Vieira de Mello dedicou sua carreira a cuidar de questões humanitárias em áreas de risco. Embaixador da ONU no Iraque, um ataque terrorista em Bagdá tirou a sua vida em 2003.
Netflix
Circuito de Cinema Saladearte
Espaço Itaú de Cinema - Glauber Rocha