Muito mais do que um filme, “As filhas do fogo” (Las hijas del fuego - Argentina) reúne ideias que precisam de discussão. Não propriamente porque a Universidade e mundo acadêmico queiram e gostem do tema para debate – mas porque a sociedade precisa ver, conviver com pessoas que querem assumir um papel que lhes deem direito a terem direitos.
Achei que o roteiro se perdeu da história que criou – perigo comum que corre qualquer filme pornô. A lógica e o encadeamento de ações sofreram com o mesmo problema comum. Porém, nada disso importa, quando estamos falando do que é necessário para se fazer um filme pornô, feito por mulheres, para mulheres, mostrando possibilidades de experimentação sexual. Só isso já é um passo. Ir adiante e falar que a população escolhida para exemplificar o filme foi a lésbica, outro passo enorme. E separo propositadamente pornô feminino, de lesbianismo porque os homens têm formas totalmente diferentes de verem os mesmos assuntos (a começar por aquelas unhas de 5 cm que são... indefinível e desproporcionalmente enormes! - e acabando pela natureza de interpretação do que significa o sexo, mesmo).
Exatamente por isso, “Las hijas del fuego ou As filhas do fogo” é um filme que merece ser visto como uma forma de libertação de ideias, mesmo que não sejam as nossas; de ideais, mesmo que não sejam exatamente os nossos; porquê cada pessoa que nasce, quando nasce, passa a ter o direito de ser o que quiser, de construir sua identidade diante de modelos não impostos.
Com Brasil e mundo totalmente corrompidos, com gente roubando e achando que é assim que as coisas acontecem, é importantíssimo marcarmos – e a mulher tem forte influência nisso – que vergonha é roubar de quem não pode sequer se defender dos saques. Que gênero - seja ele qual for – não é e nem pode ser motivo de vergonha pra ninguém. Que desviar dinheiro, poder, influência – isso sim – é vergonhoso. E que nós precisamos ser libertadas dos olhos vigilantes da sociedade para coisas nada importantes coletivamente como gênero, peso, beleza, altura, raça, religião, por exemplo.
ANA RIBEIRO
Diretora de teatro, cinema e TV
Os primeiros 4 clipes TransLúcidos começaram a ser divulgados no circuito Saladearte, antes deste filme. Tínhamos de estar presentes. Fosse qual fosse o filme. Sala cheia, esgotadíssima. Muito legal ver uma sala de cinema assim, lotada. Pessoas com quem nunca me cruzei e que um filme une. Gostei das pessoas, de olhar para elas, de as ver felizes tentando ter bilhete para ver o filme. Não lemos nada sobre o filme e por isso foi uma surpresa. Uma boa surpresa. Primeiro o clipe trans de meninas talentosas e maravilhosas. Do Bug Latino. Da produtora A Cor da Voz. Pensados, dirigidos, roteirizados, filmados, com direção de edição de Ana Ribeiro. Demitida e acusada, em lugar público, por um senhor que tinha um cargo de enorme responsabilidade em Salvador de ser uma funcionária desleal por ter tido a inteligência de registrar os seus programas. Os seus programas que outros queriam divulgar pelo Brasil inteiro como sendo seus. Uma semana depois foi a minha vez de ser demitida. Porque éramos próximas e as pessoas estavam se queixando. A competência e o profissionalismo parecem incomodar algumas pessoas. Escolhas em negativo. Quem sai é quem devia ficar. Também querem afirmar que o TransLúcidos é vosso? O “Era uma vez”, o “Reformador do Mundo”, o “Não Tem Nada Que Saber”? Etc, etc, etc? Estes e muitos que virão não podem. Emprestar programas e quase ficar sem eles não vai acontecer mais. A bondade não pode ser concedida a todos, infelizmente. Quem olha para o que essa televisão é agora, tem a explicação completa. Todos achavam que sabiam fazer. Mas saber... Fazer... Ficar sentado em frente a um computador horas pensando, trabalhando enquanto a Chapada Diamantina chama com suas cachoeiras, a linha verde chama com suas moquecas e suas praias paradisíacas, não é para todos. Só Ana Ribeiro mesmo. E demitir e acusar injustamente, não retira a criatividade das pessoas. Fere, mas a vida é generosa com quem quer fazer o bem aos outros. E existem tantas outras pessoas generosas, bondosas, que aparecem para caminhar junto. Mesmo que inclua fins de semana em frente do computador.
Quero muito agradecer à Diretora da Saladearte, Susana Argollo, pelo que faz pela arte, pelo cinema na cidade. Uma pessoa especial, que faz o bem considerando como normal e comum. Não deveríamos ser todos assim? Aceitar colocar os clipes trans antes das sessões de cinema é uma grande honra para nós Anas, Bug Latino e A Cor da Voz. E para estas meninas é um grande passo e elas estão super felizes apesar de silenciosas.
Ver o clipe no tamanho de imagem de um cinema o impacto é estrondoso.
Depois dessa grande alegria, inicia o filme. Linguagem que adoro ouvir. A língua espanhola da Argentina tem uma sonoridade que gosto por ser muito diferente da língua espanhola de Espanha. Em Portugal era muito raro ouvir argentinos. Atrizes bonitas, jovens e excelentes. Os locais de gravação são lindos. O roteiro é bem alternativo e inusitado. Tem uma narrativa mais elaborada, comparando com filmes pornô da minha juventude. É um filme interessante, útil, informativo e com algumas cenas bastante intensas. Para jovens é um filme quase diria obrigatório. No final, as organizadoras do debate e da exibição do filme perguntaram mesmo se eventualmente alguém se “animou”. Como Salvador é cheia de surpresas, no momento do debate caiu uma chuva tão forte, tão forte, que para entrar no carro caminhamos com água pela perna e para chegar em casa tivemos de passar por inundações e árvores caídas. Felizmente sem problema nenhum. Mas um grande susto.
Ana Santos, professora, jornalista
Informações sobre o filme
https://www.imdb.com/title/tt8805374/
Saladearte